sábado, 9 de junho de 2001

A Bahia de Outrora - 1916



Hoje trazemos p/você, leitor, um pouco da obra "A Bahia de outrora", no texto escolhido (que pode ser achado em outros locais da internet) o autor, ( Manuel Raimundo Querino escreveu ), traz curiosas observações a respeito da nossa arte. Esperamos que vocês gostem!!

Aconselhamos firmemente a leitura da obra completa, as que ela seja feita de forma crítica, afinal prraticamente todo registro, infelizmente, traz a visão e as "crenças" de seu autor, enfim, sempre será muito dificil uma visão totalmente imparcial em qualquer obra.

Até a próxima e fiquem com o material...

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"A Capoeira

O Angola era, em geral, pernostico, excessivamente loquaz, de gestos amaneirados, typo completo e acabado do capadocio e o introductor da capoeiragem, na Bahia. A capoeira era uma especie de jogo athletico, que consistia em rapidos movimentos de mãos, pés e cabeça, em certas desarticulações do tronco, e, particularmente, na agilidade de saltos para a frente, para traz, para os lados, tudo em defesa ou ataque, corpo a corpo. O capoeira era um individuo desconfiado e sempre prevenido. Andando nos passeios, ao approximar-se de uma esquina tomava immediatamente a direcção do meio da rua; em viagem, si uma pessoa fazia o gesto de cortejar a alguem, o capoeira de subito, saltava longe com a intenção de desviar uma aggressão, embora imaginaria.

O domingo de Ramos fôra sempre o dia escolhido para as escaramuças dos capoeiras. O bairro mais forte fôra o da Sé; o campo da lucta era o Terreiro de Jesus. Esse bairro nunca fora atacado de surpresa, porque os seus dirigentes, sempre prevenidos fechavam as embocaduras, por meio de combatentes, e um tulheiro de pedras e garrafas quebradas, em forma de trincheiras, guarneciam os principaes pontos de ataque, como fossem: ladeira de S. Francisco, S. Miguel, e Portas do Carmo, na embocadura do Terreiro. Levava cada bairro uma bandeira nacional, e ao avistarem-se davam vivas vas a sua parcialidade.

Terminada a lucta, o vencedor conduzia a bandeira do vencido.

Nos exercicios de capoeiragem, o manejo dos pés muito contribuia para desconcertar o adversario, com uma rasteira, desenvolvida a tempo.

No acto da lucta, toda a attenção se concentrava no olhar dos contendores; pois que, um golpe imprevisto, um avanço em falso, uma retirada negativa poderiam dar ganho de causa a um dos dois. Os mais habeis capoeiras, logo aos primeiros assaltos, conheciam a força do adversario; e, neste caso, já era uma vantagem, relativamente ao modo de agir.

Por muito tempo, os exercicios de capoeiragem interessaram não só aos individuos da camada popular, mas tambem às pessoas de representação social; estas, porém, como um meio de desenvolvimento e de educação physica, como hoje é o foot-ball e outros géneros de sport. Os povos cultos têm o seu jogo de capoeira, mas sob outros nomes: assim, o português joga o pau; o francez, a savata; o inglez, o soco; o japonez, o jiu-jitsu, a imitação dos jogos olympicos dos gregos e da lucta dos romanos.

Havia os capoeiras de profissão, conhecidos logo á primeira vista, pela attitude singular do corpo, pelo andar arrevesado, pelas calças de bocca larga, na pantalona, cobrindo toda parte anterior do pé, pela argolinha de oiro na orelha, como insignia de força e valentia, e o nunca esquecido chapéu á banda.

Os amadores, porém, não usavam signaes caracteristicos, mas, exhibiam se galhardamente, nas occasiões precisas. No domingo de Ramos e sabbado de Alleluia entregavam-se a desafios e luctas, nos bairros então preferidos, como fossem: o da Sé, S. Pedro, Santo Ignacio ou da Saúde.

Previamente, parlamentavam, por intermedio de gazetas manuscriptas. Duas circumstancias actuavam, poderosamente, no espirito da mocidade, para se entregar aos exercicios de capoeiragem: a leitura da Historia de Carlos Magno ou os doze pares de França, e, bem assim, as narrações guerreiras da vida de Napoleão Bonaparte.

Era a mania de ser valente como, modernamente, a de cavador. Nesses exercicios, que a gyria do capadocio chamava de -- brinquedo, dansavam a capoeira sob o rythmo do berimbau, instrumento composto de um arco de madeira flexivel, preso ás extremidades por uma corda de arame fino, estando ligada a corda numa cabacinha ou moeda de cobre.

O tocador de berimbau segurava a o instrumento com a mão esquerda. e na direita trazia pequena cesta contendo calhaus, chamada -- gongo, além de um cipó fino, com o qual feria a corda, produzindo o som.

Depois entoava essa cantiga:

"Tiririca é faca de cotá,
Jacatimba muleque de sinhá,
Subiava ni fundo di quintá.

Aloanguê, caba de matá
Aloanguê.

Marimbondo, dono de mato
Carrapato, dono de fôia,
Todo mundo bêbê caxaxa,
Negro Angola só leva fama.

Aloanguê, Som Bento tá me chamando,
Aloanguê.

Cachimbêro nã fica sem fogo,
Sinhá veia nã é mai do mundo,
Doença que tem nã é boa,
Nã é cousa de fazê zombaria.

Aloanguê, Som Bento tá me chamando,
Aloanguê.

Pade Inganga fechou corôa
Hade morê;
Parente, não. me caba de matá.

Aloanguê, Som Bento tá me chamando,
Aloanguê. Aloanguê.

Camarada, toma sintido,
Capoêra tem fundamento.

Aloanguê, Som Bento tá me chamando,
Aloanguê, caba de matá.
Aloanguê. "

Por occasião da guerra com o Paraguay o governo da então Provincia fez seguir bom numero de capoeiras; muitos por livre e espontanea vontade, e muitissimos voluntariamente constrangidos. E não foram improficuos os esforços desses defensores da Patria, no theatro da lucta, principalmente nos assaltos á baioneta. E a prova desse aproveitamento está no brilhante feito d'armas praticado pelas companhias de Zuavos Bahianos, no assalto ao forte de Curuzú, debandando os paraguayos, onde galhardamente fincaram o pavilhão nacional.

Cezario Alvaro da Costa, rapaz bem procedido e caprichoso, não era um profissional, mas, amador competente. Marchou daqui para o sul, como cabo d'esquadra do 7°. batalhão de caçadores do exercito. Nos primeiros encontros com o inimigo, começou por distinguir-se, a ponto de ser apreciado por seus superiores, e, fora subindo gradualmente, até o posto de alferes. Certo dia, depois de um combate Cezario da Costa encontrou dois paraguayos, e enfrentou-os corajosamente. Depois de acirrados recontros e, auxiliado pelo que conhecia de esgrima da baioneta, conseguiu supplantar os adversarios. Este acto de bravura, unido a outros anteriormente praticados, levaram-no á promoção no posto immediato, e a ser condecorado com o habito da Ordem do Cruzeiro, pelo marechal Conde d'Eu. Esse official falleceu em Bage, Rio Grande do Sul, no posto de capitão.

Antonio Francisco de Mello, natural de Pernambuco, seguiu para a campanha, no posto de primeiro cadete sargento ajudante do 9°. batalhão de caçadores do exercito. Não se limitava a simples amador de capoeira, possuia tendencia pronunciada para um destemido profissional, o que, decididamente, lhe prejudicou, demorando a promoção apesar de possuir certa importancia pessoal, tendo o curso de preparatorios. Não lhe eram favoraveis as opiniões escriptas pelos commandantes de corpos, nas relaçoes semestraes, livro onde se apurava o comportamento dos officiaes inferiores. O cadete Mello usava calça fôfa, bonet ou chapeo a banda, pimpão, e não dispensava o geito arrevesado dos entendidos em mandinga. Francisco de Mello fazia parte do contingente a bordo da corveta Parnahyba, na memoravel batalha do Riachuelo, e a respeito assim se pronunciou o commandante do navio:

"O contingente do 9°. batalhão portou-se como era de esperar de soldados brasileiros. Enthusiasmo no acto da abordagem, valor e esforço denodado na lucta travada braco a braço com o inimigo, excedem ao melhor elogio".

Depois dessa acção, o cadete Mello fôra promovido a alferes e condecorado. Esteve na campanha até o anno de 1869, quando voltou ao Brasil, ficando addido ao 5°. batalhão, no Rio de Janeiro. No dia que estava de serviço, costumava dizer: --

"Camaradas! sabem quem esta de estado hoje? Quem esta debaixo dos pés de S. Miguel."

Passava a noite a velar, fazendo revista incerta a toda hora. Quem faltava a revista, no dia immediato corria marche-marche por espaço de duas horas. Era o unico official que podia conter a soldadesea desenfreiada, nos dias de pagamento de soldo. Promovido a capitão, falleceu num dos Estados do Norte. Trago esses dois exemplos para justificar que a capoeira tem a sua utilidade em determinadas occasiões.

No Rio de Janeiro, o capoeira constituia um elemento perigoso; tornando-se necessario que o governo, pela portaria de 31 de Outubro de 1821, estabelecesse castigos corporaes e providencias outras, relativas ao caso. "

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Quanto ao autor:
Manuel Raimundo Querino
(Santo Amaro da Purificação, 28 de julho de 1851 -- Salvador, 14 de fevereirio de 1923)

Foi um intelectual afro-descendente, aluno fundador do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e da Escola de Belas Artes, escritor e pioneiro nos registros antropológicos da cultura africana na Bahia.

Aos quatro anos foi apadrinhado por um professor da Escola Normal de Salvador, Manuel Garcia, já que a epidemia do cólera o deixara órfão dos pais, em 1855.

Alistando-se no Exército, morou em Pernambuco e Piauí, servindo finalmente na Guerra do Paraguai, como escriba.

Procurou, depois, dedicar-se ao desenho e à pintura, estudando no Liceu de Artes e Ofícios e na Academia de Belas Artes, onde também trabalhava. Formou-se em Desenho Geométrico e passou a lecionar no Liceu e no Colégio de Órfãos de São Joaquim. Produziu dois livros didáticos sobre desenho geométrico.

Atuou na política, como abolicionista e depois fundando o Partido Operário e a Liga Operária Baiana, travando no meio intelectual debates contra as idéias preconceituosas da ciência de então, esposadas por Nina Rodrigues.

Deste embate inspirou-se Jorge Amado para criar sua personagem Pedro Archanjo, figura central do romance Tenda dos Milagres.

Obra:
  • Desenho linear das classes elementares
  • Elementos de desenho geométrico
  • Artistas baianos, Rio de Janeiro, 1909
  • As artes na Bahia, Salvador, 1909
  • Bailes pastoris, Salvador, 1914
  • A raça africana e os seus costumes na Bahia, In Anais do V Congresso Brasileiro de Geografia, Salvador, 1916
  • A Bahia de outrora, Salvador 1916
  • O colono preto como fator da civilização brasileira, 1918
  • A arte culinária na Bahia, Salvador, 1928

(Fonte: wikipedia.org)

Um comentário:

Anônimo disse...

Excellent post !